quarta-feira, 28 de abril de 2010

Resíduo

(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.




Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Angústia é fala entupida

direção: Ana Cristina Viana Oggioni e Joyce Castello Pereira.



Te acalma, minha loucura!

Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!

Este som de serra de afiar facas

não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...


Ana C.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Fora por causa do afogado que nascera a Sociedade das Sombras? Eles haviam pressentido o encantado e perigoso começo do desconhecido, o impulso que vinha do medo. Daniel lhe disse:
— Vamos criar a Sociedade das Sombras.
Antes mesmo de saber do que se tratava Virgínia já compreendera confusamente com o corpo e acedera. A Sociedade das Sombras tinha objetivos estranhos e indefinidos. Eles mesmos não os conheciam e misturavam seus mandamentos a uma ignorância quase desesperada. A Sociedade das Sombras deveria explorar a mata. Sim, sim. Mas por quê? Perto do casarão havia um caminho quase cerrado e por lá alcançava-se a escuridão. Sim, a escuridão, mas por quê?
— Porque a solidão... Solidão — é o lema da Sociedade, impunha Daniel.
— Como? custava Virgínia a entender.
— Tudo o que assustar porque deixa sozinho é o que devemos procurar, hesitava ele.
Pairava um instante, flutuando, seu pensamento cruzava-se com o dela como o arco sobre a corda do violino, ligeiras fagulhas de perspicácia e surpresa desfaziam-se no ar. Passavam-se dias sem que acrescentasse qualquer palavra sobre a Sociedade, sem que eles ousassem tocar naquela matéria viva, informe. Mas não haviam esquecido: era necessário calar para criar uma pausa no temor que já os dominava. E na alegria que fazia Virgínia tremer, os olhos contidos. A Sociedade das Sombras aproximava-a tanto de Daniel! ele a admitia diariamente. Mesmo ela amava os segredos com ferocidade como se eles fossem da sua espécie.
[...]
Daniel inquietava-a: como que ele se degradara com o poder adquirido na Sociedade das Sombras; endurecera e não perdoava jamais. Virgínia temia-o, porém não lhe ocorria sequer escapar a seu domínio. Mesmo porque ela própria se reconhecia tola e incapaz. Daniel era forte. Antes de compreender o que ele queria ela já acedera, pois:
— Virgínia, todos os dias você vendo café-com-leite gosta de café-com-leite. Vendo pai você respeita pai. Arranhando a perna você sente dor na perna, já compreendeu o que eu quero dizer? Você é vulgar e estúpida. — Sim, por Deus que ela o era — Pois a Sociedade das Sombras deve aperfeiçoar seus membros e manda que você vire tudo ao contrário. A Sociedade das Sombras sabe que você é vulgar porque você não pensa, como se diz, com profundeza, porque você só sabe seguir o que lhe ensinaram, está entendendo? A Sociedade das Sombras manda que você amanhã entre no porão, sente-se e pense muito, muito para saber o que é de você mesma e o que lhe ensinaram. Amanhã você não deve se preocupar com a família nem com o mundo! A Sociedade das Sombras falou.
O Lustre. Clarice Lispector,

domingo, 11 de abril de 2010


Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou (...). Eu abandono histórias, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia pra academia (...). Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar.




Caio Fernando Abreu

domingo, 4 de abril de 2010

Eu era mudo e só

A perplexidade do moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito de rir sem vontade, de falar sem vontade, de chorar sem vontade, de fazer amor sem vontade... O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil. Comunicação total, mimetismo: entra numa sala azul, fica azul, numa vermelha, vermelho. Um dia se olha no espelho, de que cor eu sou? Tarde demais para sair pela porta afora.





Lygia Fagundes Telles (Antes do Baile Verde)



Musgo, não é? Não sei porque quero agora ser planta, eu que fui mineral. Dura como pedra. Desmoronei de alto a baixo e agora estou aqui como um pedregulho no fundo desta almofada ...
LFT

quinta-feira, 1 de abril de 2010

"Na manhã seguinte uma folha despregou de uma árvore alta e durante enormes minutos planou no ar até repousar na terra. Virgínia não compreendia donde vinha a doçura: o chão era negro e coberto de folhas secas, donde então vinha a doçura? um desejo formava-se no ar."



O Lustre, Clarice Lispector



"Para ela, não era cedo nem tarde. Era a hora."

Vésperas, Adriana Lunardi