sábado, 29 de maio de 2010

Caí em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se desligavam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça. Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie de pasta espiritual. Deixa pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são broncos demais para perceber que não estou mais ali.



Charles Bukowski

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Não é preciso ser velho para sentir o tempo

Naquela cidade cada um sonhava o segredo.
O menino sem nome conheceu o garoto sem pernas. Ele não tinha pernas e, mesmo assim, não precisava de ninguém para ir embora.
Eles tentaram.
O garoto sem pernas mostrou o mundo como conhecia. O que não tinha nome, embarcou. Como quem nunca mais quer voltar.
Por um tempo eles olharam para a mesma direção.
Ele nunca lhe deu um nome.
Ele nunca lhe trouxe as pernas.
O que para um era sina, para o outro era o mistério.


Por algum tempo, eles poderiam ter andado juntos sobre o mesmo trilho. Mas nunca seriam esmagados pelo mesmo trem.

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Ismael Caneppele, Os Famosos e os Duendes da Morte.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Clarice Lispector.




Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza. O que há então? Só sei que não quero a impostura. Recuso-me. Eu me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.






segunda-feira, 17 de maio de 2010

“…o amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta…”





A palidez
Martha Medeiros
Entre as inúmeras frases interessantes do filósofo romeno Cioran, há uma que me chamou especial atenção outro dia, quando o estava relendo. Ele diz que a palidez nos mostra até onde pode o corpo compreender a alma. Bonito demais. A alma se manifestando através do tom da nossa pele. Não é à toa que a alva Nicole Kidman parece ter uma vida mais profunda e espiritualizada do que, por exemplo, a gaiata Cameron Diaz, que é branquela, mas está sempre correndo atrás do sol em alguma praia do mundo. Toda mulher que fizer muita questão de parecer profunda - o que não significa que ela não seja - deve investir num bom filtro solar e passar férias na Sibéria. O bronzeado nos deixa com a aparência saudável, porém acaba com o nosso mistério.

Coincidência: minutos depois de ler a frase do Cioran, passei os olhos por uma declaração da Adriana Calcanhotto no jornal dizendo que, apesar de viver há muitos anos no Rio, nunca foi à praia, prefere preservar sua tez clara. E eu pensei: Adriana não combina mesmo com uma pele queimada, com marcas do biquíni aparecendo. A alma dela não permite essas vulgaridades.

Estive no show que ela fez no Theatro São Pedro, na noite de abertura do Em Cena. Sou fã da Adriana desde os seus primeiros shows aqui em Porto Alegre, no finado Porto de Elis. E descobri ano passado que a Adriana para crianças é tão boa quanto a Adriana para adultos, talvez porque não haja mesmo muita diferença entre quem tem 8, 18 ou 80 anos. O DVD Adriana Partimpim é um luxo: letras de Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Ferreira Gullar, e ainda aquele hit do Claudinho e Buchecha, Fico assim sem você, que Adriana cantou no show do São Pedro acompanhada do coro de toda a platéia. Só ela consegue ser popular e enigmática ao mesmo tempo, e acho que a pele branquinha tem algo a ver com isso.

Eu ando pálida também, mas contra a minha vontade. Enquanto algumas pessoas possuem uma pele de porcelana e através dela passam uma certa superioridade espiritual, a minha anda é desbotada, necessitando urgentemente de uns raios ultravioleta e vitamina D. Que venham temperaturas menos glaciais, dias mais longos e belas lagarteadas ao sol. Claro, sem esquecer o filtro! Passado o inverno, seguirei lendo Cioran e escutando Adriana, mas estou prestes a passar a perna na minha alma, permitindo que minha pele ganhe um tom menos sublime, menos etéreo, diria até menos intelectual: quero mais é que ela revele, através do bronzeado, toda a superficialidade de uma vida bem curtida.
20/09/2006. Fonte: http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=2&type=1&id=216

sábado, 15 de maio de 2010

O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.

Bukowski






Bosta de carência básica infantil, que nos torna para sempre patéticos, jamais capazes de vencer essa necessidade, sozinhos, de alcançar o amor. O amor, o amor, o amor. Vá para a puta que o pariu o amor. Todo esse imperativo de amar é puro masoquismo. De ser amado, mero sadismo.

Fernanda Young


domingo, 9 de maio de 2010

já me matei faz muito tempo
me matei quando o
tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

Paulo Leminski

sábado, 1 de maio de 2010

Sempre parecera a Antoine contabilizar sua idade como os cães. Quando tinha sete anos, ele se sentia gasto como um homem de quarenta e nove anos; aos onze, tinha desilusões de um velho de setenta e sete anos. Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma vida mais tranqüila, Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez. Ele constatara muitas vezes que inteligência é palavra que designa baboseiras bem construídas e lindamente pronunciadas, e que é tão traiçoeira que freqüentemente é mais vantajoso ser uma besta que um intelectual consagrado. A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente oferece a imortalidade efêmera do jornal e a admiração dos que acreditam no que lêem.
Martin Page - Como me Tornei Estúpido