domingo, 10 de julho de 2011

Entrando pela primeira vez
no recinto fechado da casa.
Pura tempestade, cântaros, delícia.
Gozo acorda, horto e hotel.
A cidade inundando.
"Agora sou tua amante: já posso sair de madrugada".
Já posso me fartar e não sou ladra.
Pickpocket!
Desperdício.
Carona.
Tranco.
Fog.
Certa noite avoluma-se a renúncia.
Farol antineblina. Bliss também.
Pensei que não viria mais aqui.
Mas fiz por onde.

ACC

quarta-feira, 25 de maio de 2011



Navarro,

A animalidade dos signos me inquieta. Versos a galope descem alamedas a pisotear-me a alma ou batem asas entre pombos pardos da noite. Enchem o banheiro, perturbam os inquilinos, escapam pelas frestas em forma de lombrigas. Ó melancólica impertinência das metáforas! Tenho pena de mim mesmo, pena torpe de animais aflitos. Ao animá-los me dobro sobre a pena e choro. Meus ouvidos vomitam ritmos, lágrimas, obedeço. Tenho medo de dizer que a forma das letras oculta amor, desejo, e a tua esquiva pessoa ao meu redor. Na próxima tentativa (e cinco espinhos são) não soltarei mais que balbucios.

R.



anacristinacesar

sábado, 9 de abril de 2011



Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta.
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo.
Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor com
que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a
ladroagem.

Ana Cristina Cesar

sexta-feira, 25 de março de 2011

Te convenço então. Venço como estúpida
quando peço guarita ao interfone,
então, seco teus cabelos,
ando pela casa facilmente,
quando tiro tua febre,
pego carona no carro da auto-escola,
faço ar de distraída para não confundir
os teus pedais,
te convenço então,
saberias então que hoje, nesta noite, diante desta
gente,
não há ninguém que me interesse e meus versos
são apenas para exatamente esta pessoa que dei-
xou de vir
ou chegou tarde, sorrateira, de forma que não
posso,
gritar ao microfone com os olhos presos nos seus
olhos
baixos, porque não te localizo e as luzes da ribalta
confundem a visão, te arranco, te arranco do
papel,
materializo minha morte, chego tão perto que
chego
a desaparecer-me, indecência, qualquer coisa de
excessivamente
oferecida, oferecida, me pasmo de falar para quem
falo,
com que alacridade
sento aqui neste banco dos réus, raso,
e procuro uma vez mais ouvir-te respirando
no silêncio que se faz agora
minutos e minutos de silêncio, já.


Ana C.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Carta de Paris



1.
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

2.
Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra.

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!


Ana Cristina Cesar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Penélope


A mesa está posta. Todos os dias distribuo e recolho os talheres
e os pratos. Quentes e frios, eles se sucedem. Não tenho pressa.
Não me deixam andar senão de acordo com o tamanho dos meus
pratos. Levada assim pela minha fome, não chegarei longe.
Paciência.

Nélida Piñon


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Anunciação e encontro de Mira-Celi

25.

O avô tinha sido um ancião convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a avó
uma menina pálida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí
a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada no
[ ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo.

Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue
[ no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca
[ vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo
[ querer
as cortinas dão a impressão de caras
[ impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque
[ e outro de capa.
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um
[ lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para
[ perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos... A saia negra parece
[ um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este
[ fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as
[ lágrimas do fotógrafo

Jorge de Lima

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Katherine Mansfield


Há um poema assim: "Por que a rosa murchou e caiu / E estes olhos não viram?" Isso me assombra. Mas é um estado de espírito que conheço tão bem. Aquele pesar por aquilo que não se viu e não se sentiu, pelo que passou sem ter sido percebido. A vida nos é dada apenas uma vez, e nós a desperdiçamos. Você sente isso?



quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

PALAVRAS
Sylvia Plath

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.

(tradução de Ana Cristina Cesar)