quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Pertencer

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.

Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!

Clarice Lispector.



"Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustăo.
Doze meses dăo para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovaçăo e tudo começa outra vez,
com outro número e outra vontade de acreditar,
que daqui para diante vai ser diferente."
Carlos Drummond de Andrade.

5 comentários:

  1. Revigorando a esperança, desempoeirando sonhos e vontades, retrilhando caminhos: ôh ano novo! Apenas isso, e pra todos: que seja doce, que seja doce, que seja doce....

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  2. Hum... digamos, telepatia tá braaaabo hein? Eu, sinceramente, quase postei esse texto ontem. Há! Eu juro!

    E também estava lembrando desse trecho do CDA, agora que o Ano Novo tá chegando. E eu estava pensando exatamente nisso, essa ideia de cortar o tempo, faz parecer que entrando um ano novo, tudo vai mudar. ¬¬ Ilusão, ilusão.

    Mas.. que seja doce, que seja doce.. =)

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  3. Rodolpho,sumido!

    FELIZ ANO NOVO!


    Tudo na medida certa.REalmente quando estamos no limite e parece que os fardos acumulados durante todo o ano vão nos arebatar eis que numa simples mudança de ponteiros e uma novo folha de calendario na parede da cozinhas,nos fazem vigorar como crianças! com esperança em tudo que é palpavel ou não!



    Quanto ao texto de Clarice eu o tenho aqui nos meus arquivos! é lindo realmente

    Já assistiu a uns videos de uma entrevista que ela deu em 1977,pouco antes de morrer??
    é fabuloso !




    ^^

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  4. Vc sabe que ao escolher C.L. como tema deste blog
    vc fez nao poderia ter ecolhido melhor, né!???
    rsrsrs

    Nascer de graça, e ter necessidade de pertencer. O crescimento as vezes denigre nao é?

    adoro vir aqui. sempre intenso, reflexivo.

    tenha um ótimo ano!
    bjs, passa lá no mínimas!

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  5. Maravilha!!! Como ler Clarice me renovaaa... ai ai. Não conhecia esse trecho todo. =D
    Que bom passar por aqui novamente!

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É para você que escrevo, é para você.