quinta-feira, 15 de abril de 2010

Fora por causa do afogado que nascera a Sociedade das Sombras? Eles haviam pressentido o encantado e perigoso começo do desconhecido, o impulso que vinha do medo. Daniel lhe disse:
— Vamos criar a Sociedade das Sombras.
Antes mesmo de saber do que se tratava Virgínia já compreendera confusamente com o corpo e acedera. A Sociedade das Sombras tinha objetivos estranhos e indefinidos. Eles mesmos não os conheciam e misturavam seus mandamentos a uma ignorância quase desesperada. A Sociedade das Sombras deveria explorar a mata. Sim, sim. Mas por quê? Perto do casarão havia um caminho quase cerrado e por lá alcançava-se a escuridão. Sim, a escuridão, mas por quê?
— Porque a solidão... Solidão — é o lema da Sociedade, impunha Daniel.
— Como? custava Virgínia a entender.
— Tudo o que assustar porque deixa sozinho é o que devemos procurar, hesitava ele.
Pairava um instante, flutuando, seu pensamento cruzava-se com o dela como o arco sobre a corda do violino, ligeiras fagulhas de perspicácia e surpresa desfaziam-se no ar. Passavam-se dias sem que acrescentasse qualquer palavra sobre a Sociedade, sem que eles ousassem tocar naquela matéria viva, informe. Mas não haviam esquecido: era necessário calar para criar uma pausa no temor que já os dominava. E na alegria que fazia Virgínia tremer, os olhos contidos. A Sociedade das Sombras aproximava-a tanto de Daniel! ele a admitia diariamente. Mesmo ela amava os segredos com ferocidade como se eles fossem da sua espécie.
[...]
Daniel inquietava-a: como que ele se degradara com o poder adquirido na Sociedade das Sombras; endurecera e não perdoava jamais. Virgínia temia-o, porém não lhe ocorria sequer escapar a seu domínio. Mesmo porque ela própria se reconhecia tola e incapaz. Daniel era forte. Antes de compreender o que ele queria ela já acedera, pois:
— Virgínia, todos os dias você vendo café-com-leite gosta de café-com-leite. Vendo pai você respeita pai. Arranhando a perna você sente dor na perna, já compreendeu o que eu quero dizer? Você é vulgar e estúpida. — Sim, por Deus que ela o era — Pois a Sociedade das Sombras deve aperfeiçoar seus membros e manda que você vire tudo ao contrário. A Sociedade das Sombras sabe que você é vulgar porque você não pensa, como se diz, com profundeza, porque você só sabe seguir o que lhe ensinaram, está entendendo? A Sociedade das Sombras manda que você amanhã entre no porão, sente-se e pense muito, muito para saber o que é de você mesma e o que lhe ensinaram. Amanhã você não deve se preocupar com a família nem com o mundo! A Sociedade das Sombras falou.
O Lustre. Clarice Lispector,

2 comentários:

É para você que escrevo, é para você.