segunda-feira, 17 de maio de 2010

“…o amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta…”





A palidez
Martha Medeiros
Entre as inúmeras frases interessantes do filósofo romeno Cioran, há uma que me chamou especial atenção outro dia, quando o estava relendo. Ele diz que a palidez nos mostra até onde pode o corpo compreender a alma. Bonito demais. A alma se manifestando através do tom da nossa pele. Não é à toa que a alva Nicole Kidman parece ter uma vida mais profunda e espiritualizada do que, por exemplo, a gaiata Cameron Diaz, que é branquela, mas está sempre correndo atrás do sol em alguma praia do mundo. Toda mulher que fizer muita questão de parecer profunda - o que não significa que ela não seja - deve investir num bom filtro solar e passar férias na Sibéria. O bronzeado nos deixa com a aparência saudável, porém acaba com o nosso mistério.

Coincidência: minutos depois de ler a frase do Cioran, passei os olhos por uma declaração da Adriana Calcanhotto no jornal dizendo que, apesar de viver há muitos anos no Rio, nunca foi à praia, prefere preservar sua tez clara. E eu pensei: Adriana não combina mesmo com uma pele queimada, com marcas do biquíni aparecendo. A alma dela não permite essas vulgaridades.

Estive no show que ela fez no Theatro São Pedro, na noite de abertura do Em Cena. Sou fã da Adriana desde os seus primeiros shows aqui em Porto Alegre, no finado Porto de Elis. E descobri ano passado que a Adriana para crianças é tão boa quanto a Adriana para adultos, talvez porque não haja mesmo muita diferença entre quem tem 8, 18 ou 80 anos. O DVD Adriana Partimpim é um luxo: letras de Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Ferreira Gullar, e ainda aquele hit do Claudinho e Buchecha, Fico assim sem você, que Adriana cantou no show do São Pedro acompanhada do coro de toda a platéia. Só ela consegue ser popular e enigmática ao mesmo tempo, e acho que a pele branquinha tem algo a ver com isso.

Eu ando pálida também, mas contra a minha vontade. Enquanto algumas pessoas possuem uma pele de porcelana e através dela passam uma certa superioridade espiritual, a minha anda é desbotada, necessitando urgentemente de uns raios ultravioleta e vitamina D. Que venham temperaturas menos glaciais, dias mais longos e belas lagarteadas ao sol. Claro, sem esquecer o filtro! Passado o inverno, seguirei lendo Cioran e escutando Adriana, mas estou prestes a passar a perna na minha alma, permitindo que minha pele ganhe um tom menos sublime, menos etéreo, diria até menos intelectual: quero mais é que ela revele, através do bronzeado, toda a superficialidade de uma vida bem curtida.
20/09/2006. Fonte: http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=2&type=1&id=216

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