terça-feira, 24 de agosto de 2010

Onde andará Dulce Veia?

Caio Fernando Abreu

28

Pedro era tão claro que, no escuro, quando estava nu, eu ficava olhando para ele à espera de que sua pele fosforescesse como roupa branca na luz negra. Talvez por isso, por outras coisas também, a primeira vez que o vi tive um sensação de dourado. Digo sensação porque, no primeiro momento, não vi seu rosto, seu corpo, a dimensão que ocupava no espaço. Vento, poeira. Tudo isso, que vinha dele e soprava sobre mim, era dourado.

Eu estava quase dormindo quando ele entrou numa daquelas estações de metrô meio desertas depois das dez, onze horas da noite. Ponte Pequena, Tiradentes, Luz, nunca vou saber qual, nunca vou saber de onde veio, naquela vez e em todas as outras. No vagão vazio, apenas eu sentado num canto, a mochila entre as pernas, morto de sono depois de mais uma daquelas viagens de ônibus ao Rio de Janeiro, ele podia ter sentado. Foi assim que pensei quando a porta se abriu e entrou alguém que eu ainda não sabia que era ele, e não abri os olhos, porque não valia a pena, eu não procurava ninguém, naquele tempo. Pedro não sentou, embora todos os lugares, a não ser o meu, estivessem vazios. Ficou parado à minha frente, a mochila exatamente entre seus dois pés abertos. E seus pés, em sentido oposto, quase colados nos meus, ridículos, malucos. Como se dançássemos, dois homens estranhos e sozinhos, no vagão do último metrô.

Nesse momento, começou a acontecer aquela sensação. Ainda sou capaz de lembrar como, pouco antes de vê-lo parado à minha frente, fui abrindo devagar os olhos. Como se despertasse enquanto alguém abria a janela, tomado por aquela mesma sensação de dourado de quando amanhece ou anoitece nos dias claros de luz, e o sol, um instante antes de surgir ou sumir, joga sobre o horizonte todos os seus presságios, e se você souber olhar, como os homens do campo e os bichos parecem saber, poderia perfeitamente profetizar como será esse dia ou essa noite que começam ou terminam, até mesmo o dia e a noite seguintes, e muitos outros. A estação inteira, se tiver esse olhar, você pode. Desse mesmo jeito, feito bicho ou homem do campo, embora não fosse nenhum dos dois, quem sabe por estar suspenso à beira do sono, por outras coisas também, assim o previ, antes de vê-lo.


Dia após dia, no começo claro, e uma por uma de todas as estações de Pedro, antecipei. Depois, igual a essas nuvens douradas nas bordas e roxas no centro, que à medida que o sol sobe ou desce, nasce ou morre, vão transbordando lentas a escuridão do roxo em seu núcleo, enquanto o dourado se desfaz tão rápido que, se você piscar, num segundo ele já não está mais ali, e enquanto você se pergunta mas como? ou para onde foi? porque o roxo quase negro tomou toda a superfície da nuvem e, ela mesma, além da nova cor, já ganhou também outra forma súbita e inteiramente diversa. Assim ele se tornaria. Por enquanto, não, por enquanto eu tinha apenas uma sensação de dourado.

Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de uma lado para o outro, eu não sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado.
Devia ser sábado, passava da meia-noite.
Ele sorriu para mim. E perguntou?
— Você vai para a Liberdade?
— Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse:
— Então eu vou com você.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

É para você que escrevo, é para você.