sábado, 26 de junho de 2010



Rumo ao sumo

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.

Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

Paulo Leminski

sábado, 12 de junho de 2010

História Interrompida

Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender que seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição. E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pêlo macio e quente de um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num monte de cacos: uns brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como um "pedaço de hora perdida", sem significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já espedaçados.

Eu, na verdade, não sabia o que retrucar e lamentava não ter um gesto de reserva, como o seu, de alisar o cabelo, para sair da confusão. No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda. Eu lhe respondia que mesmo destruindo ele construía: pelo menos esse monte de cacos para onde olhar e de que falar. Perfeitamente absurdo. Ele, sem dúvida, também o achava, porque não respondia. Ficava muito triste, a olhar para o chão e a alisar seu gatinho morno.

Assim se passavam as horas. Às vezes eu mandava buscar uma xícara de café, que ele bebia com muito açúcar e gulosamente. E eu pensava um pensamento muito engraçado: é que se achasse que andava a destruir tudo, não teria tanto gosto em beber café e não pediria mais. Uma leve suspeita de que W... era um artista, vinha-me à mente. Para desculpá-lo, respondia-me: destrói-se tudo em torno de si, mas a si próprio e aos desejos (nós temos um corpo) não se consegue destruir. Pura desculpa.

Num dia de verão abri a janela de par em par. Pareceu-me que o jardim entrara na sala. Eu tinha vinte e dois anos e sentia a natureza em todas as fibras. Aquele dia estava lindo. Um sol mansinho, como se nascesse naquele instante, cobria as flores e a relva. Eram quatro horas da tarde. Ao redor, o silêncio.

Voltei-me para dentro, amolecida pela calma daqueles momentos. Queria dizer-lhe:
- Parece-me que essa é a primeira das horas, mas que depois dela mais nenhuma se seguirá.
Mentalmente ouvi-o responder:
- Isso é apenas uma tendência sentimental indefinível, misturada à literatura da moda, muito subjetivista. Daí essa confusão de sentimentos, que não tem verdadeiramente um conteúdo próprio, a não ser o seu estado psicológico, muito comum em moças solteiras de sua idade...
Tentei explicar-lhe, combatê-lo... Nenhum argumento. Voltei-me desolada, olhei seu rosto triste e ficamos calados.
Foi então que pensei naquela coisa terrível: "Ou eu o destruo ou ele me destruirá".

Era preciso evitar a todo o custo que aquela tendência analista, que terminava pela redução do mundo a míseros elementos quantitativos, me atingisse. Precisava reagir. Queria ver se o cinzento de suas palavras conseguia embaçar meus vinte e dois anos e a clara tarde de verão. Decidi-me, disposta a começar no mesmo momento a lutar. Voltei-me para ele, apoiei as mãos no parapeito da janela, entrefechei os olhos e sibilei:
- Essa hora me parece a primeira das horas e também a última!!
Silêncio. Lá fora, a brisa indiferente.

Ele ergueu os olhos para mim, levantou a mão sonolenta e acariciou os cabelos. Depois pôs-se a riscar com a unha os desenhos em xadrez da toalha de mesa.
Fechei os olhos, abandonei os braços ao longo do corpo. Meus lindos e luminosos vinte e dois anos... Mandei vir café e com muito açúcar.

Depois que nos separamos, no fim da estrada, voltei muito devagar para casa, mordendo um capim e chutando todos os seixos brancos do caminho. O sol já se tinha deitado e no céu sem cor já se viam as primeiras estrelas.
Estava com preguiça de chegar em casa: invariavelmente o jantar, o longo serão vazio, um livro, o bordado e, enfim, a cama, o sono. Enveredei pelo atalho mais comprido. A relva crescida era penugenta e quando o vento soprava forte ela me acariciava as pernas.

Mas eu estava inquieta.

Ele era moreno e triste. E sempre andava de escuro. Oh, sem dúvida eu gostava dele. Eu, muito branca e alegre, ao seu lado. Eu, numa roupa florida, cortando rosas, e ele de escuro, não, de branco, lendo um livro. Sim, nós formávamos um belo par. Achei-me futil, assim, imaginando quadros. Mas justifiquei-me: precisamos contentar a natureza, enfeitá-la. Pois se eu jamais plantaria jasmim junto de girassóis, como ousaria... Bem, bem, o que precisava era de resolver "meu caso".

Durante dois dias pensei sem cessar. Queria achar uma fórmula que mo desse para mim. Queria achar a fórmula que pudesse salvá-lo. Sim, salvá-lo. E essa idéia era-me agradável porque justificaria os meios que empregasse para prendê-lo. Tudo me parecia porém estéril. Ele era um homem difícil, distante, e o pior é que falava francamente de seu pontos fracos: por onde atacá-lo então, se ele se conhecia?

O nascimento de uma idéia é precedido por uma longa gestação, por um processo inconsciente para o gestante. Assim explico a minha falta de apetite no jantar magnífico, minha insônia agitada numa cama de lençóis frescos, após um dia atarefado. Às duas horas da madrugada, enfim, nasceu ela, a idéia.

Sentei-me alvoroçada na cama, pensei: veio depressa demais para ser boa; não se entusiasme; deite-se, feche os olhos e espere que venha a serenidade. Levantei-me porém e, descalça para não acordar Mira, pus-me a andar pelo quarto, como um homem de negócios à espera do resultado da Bolsa. Porém cada vez mais parecia-me que achara a solução.

Com efeito, homens como W... passam a vida à procura da verdade, entram pelos labirintos mais estreitos, ceifam e destroem metade do mundo sob o pretexto de que cortam os erros, mas quando a verdade lhes surge diante dos olhos é sempre inopinadamente. Talvez porque tenham tomado amor à pesquisa, por si mesma, e se tornem como o avarento que acumula, acumula, apenas, esquecido da primitiva finalidade pela qual começou a acumular. O fato é que com W... eu só conseguiria qualquer coisa, pondo-o em estado de "shock".

E eis como. Dir-lhe-ia (com vestido azul que me fazia muito mais loura), a voz suave e firme, fixando-o nos olhos:
- Tenho pensado muito a nosso respeito e resolvi que só nos resta...
Não. Simplesmente.
- Vamos nos casar?
Não, não. Nada de perguntas.
- W..., nós vamos casar.

Sim, eu conhecia os homens. E sobretudo conhecia-o fundamente. Ele não teria o recurso do gesto preferido. E permaneceria estático, atônito. Porque estaria diante da Verdade... Ele gostava de mim e talvez porque só a mim não conseguira destruir com suas análises (eu tinha vinte e dois anos).

Não consegui dormir durante o resto da noite. Estava tão desperta que o ressonar de Mira me enervava, e até a lua, muito redonda, cortada ao meio por um galho de folhas finas, parecia-me defeituosa, com uma inchação do lado e excessivamente artificial. Queria abrir a luz, mas ouvia de antemão as queixas de Mira a mamãe, no dia seguinte.

Levantei-me com a disposição de uma mocinha no dia do seu casamento. Cada ato meu era preparatório, cheio de finalidades, como parte de um ritual. Passei a manhã muito agitada, pensando na decoração do ambiente, na roupa, nas flores, frases e diálogos. Depois disso, como arranjar a voz suave e firme, serena e meiga? A continuar naquela febre, eu correria o risco de receber W... com gritos nervosos: "W... vamos nos casar imediatamente, imediatamente." Peguei uma folha de papel e enchi-a de alto a baixo: "Eternidade, Vida. Mundo. Deus. Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade..." Essas frases matavam o sentido de muitos dos meus sentimentos e deixavam-me fria por umas semanas, tão minúscula eu me descobria.

Mas na verdade eu não queria ficar fria: desejava viver o momento até esgotá-lo. Precisava apenas conquistar um rosto menos afogueado. Sentei-me para uma longa costura.

A serenidade foi pouco a pouco voltando. E com ela, uma profunda e emocionante certeza de amor. Mas, pensei, não existe mesmo nada, nada, por que eu troque os instantes que vêm! Só duas ou três vezes na vida experimenta-se tal sensação e as palavras esperança, felicidade, saudade, a ela se ligam, descobri. E fechava os olhos e imaginava-o tão vivo que sua presença se tornava quase real: "sentia" suas mãos sobre as minhas e uma ligeira tontura me atordoava. ("Oh, meu Deus, me perdoe, mas a culpa é do verão, a culpa é de ele ser tão bonito e moreno e eu tão loura!").

A idéia de que eu estava sendo feliz me enchia tanto que eu precisava fazer alguma coisa, alguma bondade, para não ficar com remorsos. E se eu desse a golinha de renda a Mira? Sim, o que é uma golinha de renda, embora bonita, diante de... "Eternidade. Vida. Mundo... Amor"?

Mira tem quatorze anos e é muito exagerada. Por isso, quando entrou esbaforida no quarto e fechou a porta atrás de si, com grandes gestos, eu disse:
- Beba um copo d'água e depois me conta como a gata teve trinta gatinhos e dois cachorrinhos pretos.
- Clarinha disse que ele se matou! Se matou com um tiro na cabeça... É verdade, é? É mentira, não é?

E repentinamente a história se partiu. Nem teve ao menos um fim suave. Terminou com a brusquidão e a falta de lógica de uma bofetada em pleno rosto.

Estou casada e tenho um filho. Não lhe dei o nome de W... E não costumo olhar para trás: tenho em mente ainda o castigo que Deus deu à mulher de Loth. E só escrevi "isso" para ver se conseguia achar uma resposta a perguntas que me torturam, de quando em quando, perturbando minha paz: que sentido teve a passagem de W... pelo mundo? que sentido teve a minha dor? qual o fio que liga esses fatos a... "Eternidade. Vida. Mundo. Deus."?


outubro de 1940.
Clarice Lispector, A Bela e a Fera

sábado, 5 de junho de 2010

Cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura, Ana C.

29/05/1980

Candida, darling,

Tua carta me consola, me aquece, sinto uma paz e não quero dizer nada, quero ficar quieta com esse calor e mais nada. Te sinto perto e terna. As teorias recuam, assim como uma sitaxe meio delirante que às vezes me ataca a cabeça em mania. Fico horas no meu quarto e gostando e inventando coisas para fazer. Entrei numa de literatura, é o meu brinquedo. Depois da Emily Dickinson, estou em fase de Katherine Mansfield, leio tudo, inclusive biografias ordinárias (que leio arrepiada, I must confess que para dizer a verdade estou achando cartas e biografias mais arrepiantes que a literatura) e fico sonhando com essa personagem. Também escrevo um caderno, quero fazer um livro que é prosa, que é quase um diário, que conta grandes coisas se passando nos quartinhos. Penso na Grécia incessantemente, e como por destino caiu nas minhas mãos a poesia do Cafavis, numa bonita tradução espanhola. Vou à Grécia sim, mas não antes e sim depois da invasão turística. Medito na paixão que não está doendo. Não estou com pudor de virar uma "literata" porque é assim que afago e cuido da paixão. Sendo assim não vou ficar "literata". Muitos sentimentos passaram, acho que talvez o que mais incomode, porque é muito insinuante, seja uma certa vergonha de perder o controle sobre o desespero. Escrevi uma carta rasgada para [...] e não tive resposta. Depois de três semanas passei dias elaborando um cartão que aliviasse o meu pathos. Agora não estou derramando, esse pathos é meu, e sinto que fiz uma viagem e voltei. Entrei numa do tal título, estou fazendo os trabalhos sem sofrimento, é muito bom ficar ocupada - a não ser que faça sol, mas esse recuou por uns dias. Às vezes tenho grandes ânsias de outras terras, mas não gosto de viajar para nowhere sem ninguém à vista. Estou transando leve com o Chris de quem reclamei. Aliás não era dele que eu devia estar reclamando e sim da minha depressão, meu corpo querendo outra coisa. Estamos transando leve, moramos na mesma casa. Ele é bonito como um Apolo e tem duas coisas que gosto num homem, uma certa brutalidade, uma fraqueza que me dá a segurança de eu poder dizer o que me passa na cabeça, e um gosto pela sacanagem, um olho sacana, uma coisa meio devassa. O mais engraçado é que tudo isso era absolutamente insuspeitado, me espanto. Mas de leve. Estávamos cada um pro seu lado, em andares diferentes, e naturalmente vamos cada um pro seu lado, esse é um pressuposto de leveza (...)."


Ana C. para Ana Cândida Perez.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Essa morte constante das coisas é o que mais dói.









cantos de alívio pelo que se foi,
cantos de espera pelo que há de vir.









Caio Fernando Abreu
CAIO 3D O Essencial da década de 1970.