domingo, 28 de novembro de 2010

Cabeceira

Ana C.

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

FINAL DE UMA ODE

Ana C.

Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde
via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de
fininho dolorosamente dobradas as costas e
segurando o queixo e a boca com uma das mãos.
Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente,
mas de maneira curta, curta, entendem? Eu
estava dando gargalhadas e agora estou
sofrendo nosso próximo falecimento, minhas
gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento
meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó
extrema do rato que se fere no porão, ai que
outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano
torpor me atira de braços abertos sobre as ripas
do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera
dividir o corpo em heterônimos - medito aqui
no chão, imóvel tóxico do tempo.




segunda-feira, 15 de novembro de 2010


Ana C.



Fraturo as mãos. Me reúno com casal em lugar ermo. Máquina de escrever é peça irônica entre bagagens. ‘Faz vinte dias não olho o espelho’ me diz ela. ‘Faz vinte dias não escrevo palavra’ digo-lhe em revide. Estaríamos a falar a mesma coisa? Enquanto isso eu e ele discutimos a grandeza dos poetas. Entre um pessoa e outra me aconselha estilo enxuto. Estaria a falar em pouca lágrima? Faço pouca fé.

domingo, 14 de novembro de 2010

Caio Fernando Abreu
Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada 'impulso vital'. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como 'estou contente outra vez'.

domingo, 7 de novembro de 2010

Ana C.

imagino como seria te amar

teria o gosto estranho das palavras
que brincamos
e a seriedade de quando esquecemos

quais palavras

imagino como seria te amar:
desisto da idéia numa verbal volúpia
e recomeço a escrever
poemas.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Luvas de Pelica

Ana C.



Digamos que um dia você percebesse que o seu único grande amor era uma falácia, um arrepio sem razão. Digamos que você percebesse que 40% de álcool apenas te garantia emoção concentrada como Sopa Knorr, envergonhada, arriscando o telefonema internacional que dá margem a suores contrariando o I Ching que manda que eu me cale, ou diga pouco, ou pelo menos respeite esse silêncio.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

trecho de carta, Caio F.


Tô tão humildezinho — e dizer isso é de uma vaidade... Veja só, aqui estou sozinho num hotel absurdo, com 34 (quase 35) anos, segurando as minhas pontas sem incomodar ninguém, sem dever nada a ninguém, sem nada além da minha cabeça. E tô achando bom, tô repetindo que bom, Deus, que sou capaz de estar vivo sem vampirizar ninguém, que bom que sou forte, que bom que suporto, que bom que sou criativo e até me divirto e descubro a gota de mel no meio do fel. Colei aquele “Eu Amo Você” no espelho. É pra mim mesmo.