quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Anunciação e encontro de Mira-Celi

25.

O avô tinha sido um ancião convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a avó
uma menina pálida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí
a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada no
[ ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo.

Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue
[ no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca
[ vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo
[ querer
as cortinas dão a impressão de caras
[ impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque
[ e outro de capa.
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um
[ lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para
[ perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos... A saia negra parece
[ um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este
[ fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as
[ lágrimas do fotógrafo

Jorge de Lima

Um comentário:

  1. Sou um grande admirador de Jorge de Lima, mas me parece que se trata, infelizmente, no que toca ao melhor que escreveu, com pouco potencial pra popularidade. Não sei se você conhece seu último livro, "A Invenção de Orfeu". A trama intertextual é cerradíssima, sem uma profusão de notas de rodapé exigiria uma grande erudição para ser integralmente compreendido, se é que isso é possível.

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